Renato Degiovani (57) fez o primeiro game quando tinha 25 anos, em meados de 1981, no Brasil. Sendo um dos pioneiros de nossa crescente indústria, ele poderia ter saído de nosso país. “Eu sou brasileiro e tenho orgulho disso. Nasci aqui e, mesmo podendo, não me interesso em ter cidadania italiana, alemã ou espanhola para viver fora. Não preciso disso para me definir como pessoa”, explica ele, que é de Orlândia, São Paulo. Na opinião do desenvolvedor, há uma onda em fazer jogos apenas em inglês e isso é um erro. A coluna Geração Gamer conversou com Degiovani, que tem uma carreira de 33 anos dedicada aos jogos digitais de nosso país.
Empreender para criar. Criar para empreender
O brasileiro se formou em Desenho Industrial e Comunicação Visual pela PUC-Rio em 81. Não foi um talento precoce nos videogames e nem se define como alguém que joga muito, mas tem uma veia empreendedora. “Embora ainda fosse ‘novato’ na produção de software, já era empresário e tinha experiência com esse lado dos negócios, planejando e produzindo produtos. O Atari já existia há algum tempo, desde final dos anos 70, mas meu contato com jogos mesmo foi no computador com a expectativa de fazer eu mesmo aqueles que gostaria de jogar”, diz Renato Degiovani, detalhando a cena quase inexistente em sua época.
“Eu comecei a fazer jogos como todo mundo começa: meio sem saber o que e como fazer, na base da tentativa e do erro. Assim que percebi que meus jogos despertavam interesse dos amigos, sendo que a maioria sequer tinha visto um computador, passei a olhá-los como um produto que poderia ser vendido em bancas de jornais. E foi assim que planejei e criei o Aventuras na Selva, que se tornou Amazônia, e o Aeroporto 83″, diz Degiovani, sobre seus primeiros jogos.
“Naquela época, começo dos anos 80, não existia nada para computador. Nem software, nem jogo, nem livro e nem revista. A revista Micro Sistemas só foi lançada em outubro de 81 e os livros, fora os importados, existiam apenas um ou outro sobre linguagem Basic. A saída para os usuários era mesmo as revistas que traziam listagens de programas”.
O interesse de Degiovani começou antes, em meados de 1979, quando decidiu adquirir um clone do computador Sinclair ZX80, o NE-Z80, vendido através da revista Nova Eletrônica. Foi desta forma que ele aprendeu a programar e fez seu primeiro jogo.
“O Aventuras na Selva, que se tornou Amazônia, fez o sucesso que fez por três motivos: era um modelo de jogo inédito, porque o tipo adventure ainda era pouco conhecido por aqui. Estava em português com um tema brasileiro e era um jogo complexo, difícil de ser resolvido. Isso não era uma coisa vista com frequência, nem nos jogos vendidos em fita cassete e muito menos em jogos publicados em livros e revistas. Ele foi publicado em uma edição da revista Micro Sistemas e foi uma das poucas que esgotou mesmo, de não ser possível conseguir nenhum exemplar já naquela época”, complementa o pioneiro. O jogo foi criado para o MSX, computador que abrigou jogos como Metal Gear (1987), de Hideo Kojima.
Diz Renato Degiovani: “Nunca joguei Metal Gear e, no MSX, meus jogos preferidos eram Road Fighter e Nigthmare, além de Bomberman. Usei o MSX muito mais pelos programas utilitários que eu criei nele, como Graphos III, Zapper, Topline, Scanner, Graphos PRO e Desk 3 do que propriamente pelos jogos. Nele eu fiz Amazônia, Serra Pelada, Angra I – demo e minha participação no Lenda da Gávea”.
O pioneiro na criação de jogos não ficou apenas programando, mas também atuou no jornalismo especializado. “A revista foi a coisa mais importante de toda a minha carreira e estive tão envolvido com ela que nossas histórias se entrelaçam de forma absoluta. Fui de tudo por lá: leitor, colaborador, assessor, diretor técnico, diretor de arte, editor geral, manda chuva, etc. Sempre tive um fascínio não apenas pela imprensa, mas principalmente por publicações. Desde garoto e até na faculdade eu publicava jornais indies. Na verdade fui eu quem levei o gosto pelas discussões para dentro da revista. Em 1985, eu publicava matérias sobre como produzir jogos comercialmente no Brasil. Além disso, abri espaço para prestigiar os lançamentos de jogos genuínos nacionais e combater de frente a pirataria dos jogos brasileiros”.
Para criar jogos, Degiovani idealizou uma plataforma para a cena nacional de games. “Fizemos em 1985 o primeiro curso de criação de jogos gratuito, cujo objetivo era formar especialistas para produzir mais jogos nacionais. Foi no final deste curso que falei, pela primeira vez, que haveria em breve o lançamento de um novo computador, que prometia ser o padrão dali para frente: O MSX. Isso foi em fevereiro daquele ano e o MSX só apareceu nas lojas no Natal”.
O final da década de 1980 foi marcado pelo fim do Regime Militar, com a presidência indireta do general do Exército João Batista Figueiredo. Naqueles dias, existia a famosa “reserva de mercado” na informática, o que impedia a abertura de mercado no Brasil.
“Como consumidor final, a gente não sentia muito os efeitos da reserva, porque pouca informação chegava de fora. Quando a gente queria um micro que era proibido de ser importado, soluções criativas nunca faltaram. Evidentemente que, do ponto de vista do desenvolvimento e avanço tecnológico, a reserva de mercado travou o Brasil por um bom tempo. Mas não creio que se não tivesse existido a reserva, estivéssemos muito mais à frente do que estamos hoje. Nosso problema aqui nunca foi só com a proibição em si mesma”, completa Renato Degiovani.
Apenas jogos em inglês pode ser um erro
“Minha percepção é que os temas nacionais sempre foram um diferencial de peso na venda de jogos das décadas de 80 e 90. A partir dos anos 2000, com a chegada do conceito de game globalizado, as pessoas passaram a achar que, para atingir o mundo, os jogos tinham que ser feitos em inglês, sem enredo com temática brasileira. Nós vamos pagar caro por este erro por muito tempo”, diz Degiovani, começando a falar sobre sua paixão por videogames e produtos 100% nacionais.
Renato Degiovani se define como um defensor da cultura brasileira nos videogames. “Gosto dos mistérios, eventos e locais na nossa história, além dos personagens marcantes nacionais. Não sou fanático quanto a isso, mas não troco um personagem bandeirante por um samurai, em termos de enredo, narrativa e riqueza de possibilidades. Antes de tudo sou um autor e a primeira coisa que eu avalio num projeto de jogo é o potencial do tema e do quanto ele já foi usado em outros projetos”, diz o especialista.
A visão de Degiovani é cultural e empresarial: “Sendo brasileiro, meu objetivo maior é agradar a quem está próximo, quem entende a minha língua e quem, como eu, gosta de toda essa mistura que nos tornamos. Acima de tudo, eu defendo a cultura brasileira em jogos pelo potencial comercial que ela representa. E digo isso não com achismos, mas porque eu vi e vivenciei por anos o mercado brasileiro respondendo bem a um produto genuinamente nacional. Isso não quer dizer que não considero o mercado global como meta comercial importante e prioritária”.
No entanto, embora seja um entusiasta do Brasil, Degiovani vê diversas falhas entre os criadores de jogos brasileiros. “Falta visão gerencial e comercial entre executivos. As empresas de jogos no Brasil são formadas a partir de pessoas ou grupos que entendem e sabem como fazer um jogo, mas raramente entendem como produzir um produto. Quem cria jogo é o autor e não o empresário. Misturar as duas coisas é perigoso, porque uma toma espaço da outra e geralmente ocorrem decisões conflitantes. O empresário é o cara de sangue frio que, a qualquer momento, pode engavetar um projeto e investir em outro. Isso pode fazer seu jogo dos sonhos ficar na berlinda. A boa notícia é que com o tempo a gente vai perdendo esse amor intenso pelas nossas criações. Depois que o desenvolvedor cria seu vigésimo jogo comercial, ele já não o vê mais como a oitava maravilha do mundo. O problema é sobreviver como empresa até chegar neste ponto”, frisa o criador com três décadas de experiências.
“O governo, mesmo quando tem boas intenções – e isso é meio raro – mais atrapalha do que ajuda. Tenho dito que, se o governo quer mesmo nos ajudar, basta deixar a gente quieto no nosso canto. Muitos me criticam por isso, mas quem já passou dos 50 sabe tão bem quanto eu que não dá pra confiar ou contar com o governo. A máquina é lenta, complexa, ineficiente e nunca tem uma compreensão correta dos problemas. Não devemos contar com isso para a nossa geração. Essa é uma luta de longo prazo e não é para dar resultados amanhã”, critica Renato Degiovani.
Jogos e política combinam?
No auge do escândalo do chamado Mensalão, que envolveu o Partido dos Trabalhadores (PT), os políticos José Dirceu e José Genoíno, e até acusações ao ex-presidente Lula de saber sobre o suposto esquema de mesada para parlamentares, Renato Degiovani fez um jogo sobre o acontecimento em 2005. “Foi o casamento do momento certo com o tema certo na mídia certa, e não necessariamente o game em si. Considero esse jogo a produção mais tosca que eu criei. Era para ser apenas mais um game de conteúdo do site, tanto que não levou nem uma semana para ser feito. O propósito era colocar o jogador na posição de julgar os personagens daquele evento que estava acontecendo na política”.
Renato Degiovani faria um jogo hoje sobre o escândalo do Metrô e da CPTM em São Paulo, envolvendo empresas e o partido de oposição ao PT, o PSDB? Ele respondeu à coluna: “Sinceramente, hoje não sei te responder esta pergunta. Há tanta patrulha política, de um lado e de outro, que um jogo assim não tem mais a força e o impacto que tinha antes da internet se firmar junto ao público não-gamer. Chamam a atenção num primeiro momento, mas logo depois desaparecem nos fatos do cotidiano. Acredito que o jogo protesto não funciona mais sozinho, mas a inserção desses momentos políticos em jogos mais elaborados podem render bons resultados”.
A era da internet
“Em 1995, já estava claro pra mim que as revistas de tecnologia iriam migrar para a internet e eu já tinha, há muito tempo, um projeto para uma publicação dedicada exclusivamente à criação de jogos. No papel nunca foi possível fazê-la pelos custos envolvidos. Quando o pessoal da editora da Micro Sistemas deixou claro que não achava que a internet ia dominar tudo, eu resolvi que era a hora de uma mudança”, explica Renato Degiovani, sobre uma transformação em sua carreira.
“Passei o ano de 96 inteiro projetando como seria o site e como iria monetizá-lo. Coloquei em risco e em jogo tudo o que tinha aprendido ao longo de 13 anos na Micro Sistemas e esse pioneirismo não ficou barato. A TILT Online foi de longe o meu maior projeto e o maior envolvimento que eu tive, nos negócios de publicação e jogos. Com a TILT eu criei um produto hibrido. Como as vendas de jogos estavam caindo, eu procurei desenvolver jogos com uma abordagem mais editorial do que propriamente entretenimento. Os games funcionavam como suporte e base do site de conteúdo, cuja parte chamada club TILT era paga”, explica Degiovani, que apostou num sistema parcialmente gratuito para atrair consumidores para pagarem pelo conteúdo e pelos games.
Este foi o maior desafio para Renato Degiovani: “Tive que vencer a resistência das pessoas que achavam que, por estar na internet, tudo tinha que ser gratuito. Hoje, o pessoal que está começando ou vem produzindo de 2010 pra cá, não faz a menor ideia do que foi essa compreensão equivocada que entendeu o ‘free’ da internet não como ‘livre para todos’, mas como ‘grátis para todos’. Esse desafio foi até maior que o desafio de enfrentar a pirataria nos anos 80, onde até ameaças eu recebia de tempos em tempos”.
Renato Degiovani tenta ser mais um criador de jogos do que um empreendedor. Mas pede aos executivos que percam seus medos: “Desenvolvedores brasileiros precisam aprender tudo sobre empresas. Entrar no mercado como empresário, sem querer ser empresário de verdade, é a pior decisão que uma pessoa toma. A empresa é um ente vivo que tem necessidades bem específicas que exigem atenção total, o tempo todo. Quando o desenvolvedor vira empresa, ele tem que entender que passou a ter três prioridades e cada uma com vida própria: A empresa, o jogo que ele está criando e sua carreira profissional”.
O ambiente digital acelera demandas que já existiam quando Degiovani começou, há mais de 30 anos atrás. “A única forma de promover, incentivar e fortalecer a industria nacional é produzindo jogos que agradem ao público consumidor. Os demais mecanismos são complementares a isso”, ressalta o especialista.
O desenvolvedor também tem sua aposta entre os jogos nacionais em 2014: “Eu aposto no Cangaço, da Sertão Games. Não porque é temática nacional apenas, mas porque tem uma mecânica diferente do que o mercado está acostumado. É bonito, é bem feito, chamativo e expressivo na internet. No mundo, ele vai chamar a atenção justamente por ser um tema inédito brasileiro. No mercado interno, se ele cair no agrado do consumidor casual, tem tudo pra ser um delimitador na produção nacional. Estou acompanhando de perto a reta final deste jogo porque ele está dentro daquilo que eu sempre vi fazer sucesso por aqui, que chega silenciosamente no mercado, sem ter sofrido nenhum desgaste na sua imagem ao longo do tempo que ficou em desenvolvimento”.
Parcerias internacionais e associações
“Essas parcerias com a Sony e outras empresas internacionais são importantes, desejáveis, oportunas mas não são a solução pra nada no Brasil. Quando muito, elas podem alavancar alguns estúdios ou projetos e olhe lá”, critica Renato Degiovani, sem perder o entusiasmo pelo que é nacional e local. “A produção brasileira de hoje tem muito mais elementos de pequena empresa em desenvolvimento que sobrevive num ambiente inóspito e árido de criação”.
E as associações de jogos como ABRAGAMES e ACIGAMES. Degiovani também critica: “Elas ajudam no papel, sim. No sonho de cada um também. Mas, na prática, são mecanismos ineficientes, lentos e quase sempre fora de sintonia com o mercado. No final das contas, projetamos nas associações responsabilidades e questionamentos para os quais elas não foram criadas. Os dois exemplos que temos, ABRAGAMES e ACIGAMES, são exatamente isso: As pessoas esperam que elas ‘defendam a produção nacional’, quando na verdade toda associação existe com o único propósito de defender os seus associados e não os desenvolvedores de um modo geral”.
O que o pioneiro pensa sobre o futuro?
Renato Degiovani tem 57 anos, mas está completamente antenado com o que há de moderno no mercado de videogames: “O futuro dos jogos certamente é o holodeck (simulador de realidade virtual da franquia de ficção Star Trek). Uma parte dos jogos convergirá para uma mecânica ultra realista, com custos de produção cada vez mais altos. Serão mais altos até do que os de filmes de grande porte, exceto pelos salários de alguns atores. Teremos também uma vertente que irá convergir para a literatura interativa. Os jogos serão um misto de livro e jogo ao mesmo tempo. A mecânica para isso está sendo desenvolvida aos poucos, a partir das obras de aventuras, indo na direção de uma narrativa mais dinâmica e flexível. Neste modelo os custos de produção nunca serão impeditivos, mas a criatividade e a fluência na construção de enredos será fundamental”.
“E, é claro, vai existir sempre mercado para os jogos passatempo: simples, bonitos, desafiadores e viciantes”, finaliza o pioneiro na criação de games do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário